APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA
A sociologia das relações de poder de Norbert Elias
Federico Neiburg [1]


As palavras establishment e established são utilizadas, em inglês, para designar grupos e indivíduos que ocupam posições de prestígio e poder. Um establishment é um grupo que se auto-percebe e que é reconhecido como uma "boa sociedade", mais poderosa e melhor, uma identidade social construída a partir de uma combinação singular de tradição, autoridade e influência: os established fundam o seu poder no fato de serem um modelo moral para os outros.

Na língua inglesa, o termo que completa a relação é outsiders, os não membros da "boa sociedade", os que estão fora dela. Trata-se de um conjunto heterogêneo e difuso de pessoas unidas por laços sociais menos intensos do que aqueles que unem os established. A identidade social destes últimos é a de um grupo. Eles possuem um substantivo abstrato que os define como um coletivo: são o establishment. Os outsiders, ao contrário, existem sempre no plural, não constituindo propriamente um grupo social.

Os ingleses utilizam os termos establishment e established para designar a "minoria dos melhores" nos mundos sociais mais diversos: os guardiães do bom gosto no campo das artes, da excelência científica, das boas maneiras cortesãs, dos distintos hábitos burgueses, a comunidade de membros de um clube social ou desportivo.

Os habitantes do povoado industrial no qual Norbert Elias e John Scotson realizaram a pesquisa que serve de base a este livro também descreviam a diferença e a desigualdade social como relações entre estabelecidos e outsiders. Ainda que, segundo os indicadores sociológicos correntes (como renda, educação ou tipo de ocupação), Winston Parva fosse uma comunidade relativamente homogênea, não era esta a percepção daqueles que ali moravam. Para eles, o povoado estava claramente dividido entre um grupo que se percebia, e que era reconhecido, como o establishment local e um outro conjunto de indivíduos e famílias outsiders. Os primeiros fundavam a sua distinção e o seu poder em um princípio de antigüidade: moravam em Winston Parva muito antes do que os outros, encarnando os valores da tradição e da boa sociedade. Os outros viviam estigmatizados por todos os atributos associados com a anomia, como a delinqüência, a violência e a desintegração.

Como explica Elias no importante ensaio teórico que abre o livro, Winston Parva se transformou, aos olhos dos pesquisadores, em um verdadeiro laboratório para a análise sociológica, revelando as propriedades gerais de toda relação de poder. As categorias estabelecidos e outsiders se definem na relação que as nega e que as constitui como identidades sociais. Os indivíduos que fazem parte de ambas estão, ao mesmo tempo, separados e unidos por um laço tenso e desigual de interdependência.

Superioridade social e moral, autopercepção e reconhecimento, pertencimento e exclusão são elementos dessa dimensão da vida social que o par estabelecidos-outsiders ilumina exemplarmente: as relações de poder [2]. Junto com o termo "establishment", são palavras rigorosamente intraduzíveis, pois descrevem uma forma "tipicamente inglesa" de conceituar as relações de poder, de um modo abstrato ou puro, independente dos vários contextos concretos nos quais essas relações podem realizar-se. A força da sociologia de Elias consiste em mostrar de modo empiricamente consistente o conteúdo universal dessa forma singular de relações de poder - em descobrir, como diriam os antropólogos, a contribuição inglesa, e de Winston Parva, para uma teoria geral das relações de poder [3].

Norbert Elias chegou a Londres em 1935, dois anos depois de ter deixado a Alemanha, seu país de origem. Morou quase quatro décadas na Inglaterra, até que na metade dos anos 70 mudou-se para Amsterdã, quando sua obra começava a ser reconhecida internacionalmente. Os estabelecidos e os outsiders é o trabalho mais importante realizado por Elias durante esses 40 anos nos quais pouco publicou, ocupando um lugar marginal com relação à sociologia da época. A pesquisa foi realizada no final dos anos 50 em uma pequena comunidade batizada com o nome fictício de Winston Parva. O livro foi editado pela primeira vez em 1965, quando Elias era professor da Universidade de Leicester.

Os estabelecidos e os outsiders ocupa um lugar singular na história da teoria social do período posterior à Segunda Guerra Mundial, quando a sociologia (e, principalmente, a sociologia escrita em língua inglesa) estava dominada pelo modelo estrutural-funcionalista, associado à figura de Talcott Parsons. Segundo esse modelo, que se organizava em torno da oposição sociologia teórica-sociologia empírica, quanto mais localizado fosse o objeto de estudo e quanto menor fosse a sua escala, menor seria o alcance da teoria, a pretensão de uma obra e o status de um autor. Nessa hierarquia de autores, obras e objetos, textos como o de Elias e Scotson estavam condenados a ocupar um lugar menor. No quadro da divisão do trabalho sociológico, o livro podia ser identificado com os "estudos de comunidade", um gênero que, apesar de estar em franca expansão na época, ocupava um lugar claramente subordinado e sobre o qual pesava um estigma equivalente ao atribuído aos subúrbios operários que eram o seu principal referencial empírico.

Trata-se do único livro propriamente etnográfico realizado por Norbert Elias, cuja obra é mais associada à sociologia histórica, centrada na interpretação de fontes escritas. Os estabelecidos e os outsiders é o resultado de aproximadamente três anos de trabalho de campo. Durante esse período, Scotson era professor de uma escola de Winston Parva, enquanto Elias trabalhava para um Programa de Educação de Adultos na região. É uma monografia em que se combinam dados oriundos de fontes diferentes: estatísticas oficiais, relatórios governamentais, documentos jurídicos e jornalísticos, entrevistas e, principalmente, "observação participante". Uma das suas virtudes principais reside, precisamente, na produtividade teórica desse ecleticismo metodológico. O tratamento de fontes diversas permite alcançar o conjunto de pontos de vista (e de posições sociais) que formam uma figuração social, e compreender a natureza dos laços de interdependência que unem, separam e hierarquizam indivíduos e grupos sociais [4].

No entanto, no livro, não há nenhuma discussão puramente teórica deste argumento. Há, em compensação, várias demonstrações empíricas, entre as quais se destaca a discussão relativa à noção de "anomia". Ao longo do texto, e especialmente em um dos seus apêndices, Elias propõe recuperar o sentido descritivo que tinha essa noção no estudo do suicídio realizado por Émile Durkheim no final do século passado. Para o sociólogo francês, lembra Elias, o "suicídio anômico" resultava de condições sociais específicas, fazendo parte de uma forma social particular. Na sociologia anglo-saxã do pós-guerra, ao contrário, a noção de anomia referia-se a um estado de ausência, de falta de regras e de ordem, de não-estrutura; possuía o sentido normativo de um julgamento moral, associado aos mesmos valores que, em Winston Parva, serviam para estigmatizar os outsiders. Elias não só demonstra que existe uma afinidade entre o ponto de vista de algumas teorias sociológicas e, por exemplo, as fofocas dos estabelecidos sobre os recém-chegados (analisadas especificamente em um dos capítulos), mas também considera alguns dos canais que comunicam esse pontos de vista: a presença de outros agentes sociais que contribuem para a naturalização dessas diferenças sociais e das formas de percebê-las, como os "sociólogos aplicados", os jornalistas e os elaboradores e implementadores de políticas (no duplo sentido de públicas e de partidárias).

Como em outros trabalhos de Elias, dados empíricos aparentemente menores e insignificantes (os "costumes" no caso do O processo civilizador) transformam-se aqui em via privilegiada para tomar distância das formas consagradas de enunciar os problemas em ciências sociais, mostrar como essas teorias contribuem para a construção da realidade social e iluminar as formas mais gerais da vida social. Essa "reflexividade" singular, que é uma das característica mais notáveis da sociologia de Elias, confere a este livro uma enorme atualidade, sugerindo caminhos para criticar e reformular algumas das questões que organizam a agenda da ciência social contemporânea em torno de expressões como "exclusão" ou "violência".

A versão em português que estamos apresentando contém o posfácio que Elias escreveu para a edição alemã do livro, publicada em 1993. Elias fala ali de dois mundos sociais, diferentes de Winston Parva, que ilustram bem uma das virtualidades de toda relação entre estabelecidos e outsiders: o uso da força física, a violência e o assassinato. Um desses mundos é o das relações raciais e de gênero no sul dos Estados Unidos, nas primeiras décadas deste século. Depois da abolição da escravidão, os homens brancos perderam os seus privilégios sobre as mulheres negras, mas continuava sendo legítimo para eles utilizar a força física contra os negros e, ainda, matá-los se não respeitassem o tabu referente às mulheres brancas. Toda relação sexual entre um homem negro e uma mulher branca era vista como "violação" (física, da vítima, e da ordem social estabelecida) e, por isso, suscetível de ser penalizada jurídica e moralmente, segundo os códigos de honra que legitimavam essa manifestação de superioridade que é um assassinato. O outro universo social mencionado no texto é o das relações entre alemães e judeus alemães antes da Segunda Guerra Mundial, o mundo da sua própria infância, adolescência e juventude [5].

Norbert Elias nasceu em 1897 na cidade de Breslau, que hoje, com o nome de Wroclaw, pertence a Polônia. Sua família era uma das tantas famílias de "judeus alemães" que viviam em um mundo social atravessado pela tensão entre o sentido de inclusão e o de exclusão, uma vez que os judeus ocupavam o lugar de minoria estigmatizada nessa figuração social que era a nação alemã. Entre os presentes que Elias recebeu quando fez treze anos de idade, por ocasião do seu Barmitzvá (o ritual judeu de entrada no mundo dos adultos), encontravam-se peças da cultura clássica do seu país: livros de Schiller e Goethe. No início da Primeira Guerra Mundial, o jovem Elias se alistou como voluntário no exército e lutou na frente ocidental. Em 1933, quando os nacional-socialistas chegaram ao governo, encontrava-se preparando sua "tese de habilitação", sob a orientação de Alfred Weber, e desempenhando a função de assistente de Karl Mannheim na Universidade de Frankfurt. A rápida transformação do anti-semitismo em política de Estado teve o efeito de abortar sua promissora carreira universitária, o que, sem dúvida, deve ter influenciado na sua rápida decisão de abandonar Alemanha. Os seus pais, como muitos outros judeus alemães, demoraram bem mais a perceber que nas relações entre ambos os termos (judeu e alemão) havia se produzido uma alteração que tornava possível o extermínio. O último encontro de Elias com seus pais ocorreu em 1938, em Londres. Hermann Elias morreu em Breslau em 1940; sua mãe, Sophie, foi assassinada em Auschwitz, em 1941.

Quando, em 1977, a Universidade de Frankfurt instituiu o prêmio Theodor W. Adorno, Norbert Elias, então com 80 anos, foi o primeiro a ser homenageado (Elias morreu, em 1990, em Amsterdã). Na cerimônia de premiação, realizada no dia 2 de outubro, no auditório principal da universidade, Wolf Lepenies referiu-se a Elias como um outsider, propondo algumas conexões entre a vida do sociólogo alemão e a sua singular sensibilidade sociológica (Lepenies: 1978). Suas palavras sugeriam que a figura de Elias oferece uma interessante oportunidade para refletir sobre a biografia social de um autor - incluindo os vínculos entre a sua trajetória pessoal, o conteúdo e as leituras da sua obra. Trata-se, sem dúvida, de um árduo problema para a sociologia. Um problema em relação ao qual Os estabelecidos e os outsiders (livro escrito em inglês sobre a Inglaterra) parece contribuir para isso de forma particular, nos permitindo considerar as relações existentes entre a experiência social de um indivíduo e a dimensão nacional da vida social.


NOTAS

1. Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), Museu Nacional/UFRJ. Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 

2. Embora Elias raramente faça referências a outros autores, na sua teoria das relações de poder pode se reconhecer um diálogo com Hegel (a questão do reconhecimento na dialética do senhor e do escravo), Simmel (os conflitos como vínculos de tensão e desigualdade sociologicamente positivas), Weber (o problema da legitimidade nas formas de dominação), Durkheim (a noção de coesão e a idéia de que as relações sociais podem ser de intensidade variável), Freud (a relação entre identidades individuais e coletivas) e Bateson (as noções de double-bind e de cismogênese).

3. Essa é a razão pela qual nesta edição decidimos manter os termos em inglês, com a exceção de established, que traduzimos, literalmente, por "estabelecidos". Elias não dedicou uma obra específica ao estudo de "os ingleses" (como o fez com os alemães, cf. Elias, 1989), mas escreveu uma boa quantidade de textos sobre eles, que se encontram mais ou menos dispersos. Entre esses, deve-se destacar o livro sobre esporte, escrito juntamente com Eric Dunning (Elias e Dunning, 1986) e, também, o artigo dedicado à gênese da profissão naval na Inglaterra (Elias, 1950). 

4. "Figuração" [Figuration] é a categoria utilizada por Elias para descrever o objeto de sua sociologia: o estudo das "figurações sociais" (cf. Elias, 1986).

5. Elias dedicou um capítulo do seu livro autobiográfico (Elias, 1990) ao estudo dos judeus enquanto integrantes de uma relação estabelecidos-outsiders. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ELIAS, Norbert. 1950. "Studies in the genesis of the naval profession", The British Journal of Sociology, vol.I, p.291-309.
__________ 1986. Was ist Sociologie?, Munique: Juventa. [Ed. port.: Introdução à Sociologia. Lisboa: 70, 1986.]
__________ 1989. Studien über die Deutschen (Machtkämpfe un Habitusentwicklung im 19. und 20. Jahrhundert). Frankfurt: Suhrkamp, 1989. [Ed. bras.: Os alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.]
__________ 1990. Norbert Elias über sich selbst, Frankfurt: Suhrkamp. [Ed. bras.: Norbert Elias por ele mesmo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, no prelo.]

ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric. 1986. Quest for Excitement. Sport and Leisure in the Civilizing Process. Oxford: Basil Blackwell. [Ed. bras.: Em busca da excitação. Rio de Janeiro/Lisboa: Bertrand Brasil/Difel, 1995.]

LEPENIES, Wolf. 1978. "An outsider full of unprejudiced insight", New German Critique, 15: 57-64.