O que é o tempo? Como dizia Santo Agostinho em suas Confissões:
“Quando ninguém me pergunta, eu sei, quando se trata de explicá-lo, já não
sei mais. Minha alma queima, queima em saber o que é o tempo.” De forma análoga
se inicia a reflexão de Norbert Elias em seu recém publicado livro Sobre o
Tempo (Jorge Zahar, tradução de Vera Ribeiro, 163 págs., R$ 17,00):
“‘Quando não me perguntam sobre o tempo, sei o que ele é’, dizia um ancião
cheio de sabedoria. ‘Quando me perguntam, não sei.’” A alma de Elias
queima em saber “como medir uma coisa que não se pode perceber pelos sentidos.
Algo que não se pode ver, tocar, ouvir, saborear, nem respirar. Uma ‘hora’
é algo invisível”.
Este livro constitui uma reflexão acerca da noção de
tempo, na qual são aplicadas as categorias já conhecidas deste importante sociólogo
alemão. Em o Processo Civilizador, obra fundamental para a compreensão
de Elias, tratou ele de demonstrar, por meio da análise dos costumes, como o
indivíduo teve o controle de suas pulsões transferido de uma proibição
externa para a criação de um mecanismo estável de auto-controle. A
estabilidade dos mecanismos de auto-controle proporciona a criação do que
Elias denomina habitus, que seria um “saber incorporado” ou “segunda
natureza” do homem civilizado. O tempo é assim, para Elias, um habitus, um
mecanismo de auto-controle, ou seja, um traço característico do processo
civilizador e um símbolo social resultante de um longo processo de aprendizagem.
“A maneira como os homens vivem o tempo nas sociedades rigorosamente
disciplinadas em matéria temporal constitui um exemplo, dentre muitos outros,
de estruturas de personalidade que, por mais que sejam adquiridas, nem por isso
são menos coercitivas de que as peculiaridades biológicas”, lembra Elias.
A coerção do tempo é de natureza social, mas também
repousa sobre dados naturais, como o envelhecimento. “O desenvolvimento de uma
pessoa humana caracteriza-se por um entrecruzamento de processos biológicos e
sociais.” Se pensarmos no calendário, que representa a noção de tempo em
seu atual estágio de desenvolvimento, podemos perceber que chegamos a uma “síntese
de nível altíssimo, uma vez que relaciona posições que se situam,
respectivamente, na sucessão de eventos físicos, no movimento da sociedade e
no curso de uma vida individual”.
Uma das propostas de Elias é tomar a noção de tempo,
enquanto individualização de uma regulação social, como um verdadeiro
paradigma do processo civilizador. Sua reflexão sobre o tempo pretende corrigir
a imagem de um mundo cindido entre “indivíduo”, “sociedade” e
“natureza” e proporcionar uma visão da “imbricação mútua e interdependência”
entre as três esferas. No que se refere à relação entre “natureza” e “sociedade”,
diz Elias: “Esses dois campos são colocados como independentes um do outro,
como independentes gostariam de ser os grupos de especialistas que se dedicam ao
estudo de um ou do outro. Na realidade, a humanidade e portanto a ‘sociedade’,
a ‘cultura’, etc, não são menos ‘naturais’ nem menos integrantes de um
único e mesmo universo do que os átomos ou as moléculas.”
Segundo Elias, o tempo é antes de tudo um desafio para a
Sociologia na medida em que “da coexistência dos homens provém algo que eles
não compreendem, que lhes parece enigmático e misterioso”. “O tempo é um
símbolo, mas, assim como em relação a outros símbolos criados por eles próprios,
os homens não possuem um consciência clara de sua natureza e modo de
funcionamento. (...)Ainda hoje, o estatuto ontológico do tempo permanece
obscuro, de modo geral. Meditamos sobre ele sem saber muito bem com que tipo de
objeto estamos lidando. O tempo é um objeto natural, um aspecto dos processos
naturais, um objeto cultural? Ou será em virtude de o designarmos por um
substantivo que nos iludimos com seu caráter de objeto? O que é, afinal, que
realmente indicam os relógios, ao dizermos que dão a hora.?” Daí a grande
preocupação de Elias em desvendar, ao longo das eras, como se dá a relação
dos homens com o tempo e com que objetivo os seres humanos necessitam determinar
o tempo.
Para Elias, as tentativas de resolver a questão no plano
filosófico ou no campo da Física, que são as formas tradicionais de
tratamento da questão, não dão conta do problema. Para a Física, o tempo
constitui um dado objetivo do mundo que só se distingue dos demais objetos da
natureza por não ser perceptível. Para a filosofia, trata-se de uma forma
inata de experiência, uma maneira de captar em conjunto acontecimentos que se
assentam numa particularidade da consciência humana. Em Kant, lembra Elias,
espaço e tempo representam uma síntese a priori . Dado natural para as duas
concepções, o tempo é objetivo para a Física e enraizado na natureza humana
para a Filosofia. “A auto-regulação ‘temporal’ com que deparamos em
quase todas as sociedades avançadas não é um dado biológico, ligado à
natureza humana, nem tampouco um dado metafísico, ligado a algum a priori
imaginário, porém um dado social, um aspecto da evolução social da estrutura
de personalidade, que, como tal, torna-se parte integrante da individualidade de
cada um”, adverte Elias.
Como vemos, sua hipótese é a de que o tempo não é
“natural” e sim uma instituição social que resulta de um longo processo de
aprendizagem. Esse aprendizado é histórico, uma vez que o indivíduo só pode
construir algo a partir de um patrimônio de saber já adquirido. Ao mesmo
tempo, essa aprendizagem é individual, pois mesmo a criança, para que possa
desempenhar seu papel de adulto, desenvolve um sistema de auto-disciplina
conforme essa instituição social que é o tempo: nas sociedades
industrializadas o tempo exerce de fora para dentro, sob a forma de relógios,
calendários e outras tabelas de horários, uma coerção que suscita o
desenvolvimento da autodisciplina no indivíduo. “A transformação da coerção
exercida de fora para dentro pela instituição social do tempo num sistema de
autodisciplina que abarque toda a existência do indivíduo ilustra,
explicitamente, a maneira como o processo civilizador contribui para formar os
habitus sociais que são parte integrante de qualquer estrutura da personalidade”,
aponta Elias.
Elias demonstra suas afirmações, ao longo do livro, da
forma que lhe é característica (e é nesse ponto que reside o interesse deste
livro). Procurando delimitar a noção de tempo através das particularidades de
cada sociedade no curso da história, e confrontando as diversas características
históricas e culturais no que se refere à relação do homens com o tempo, o
autor detecta em cada exemplo que apresenta, que a noção de tempo tem como
peculiaridade ser um dos habitus socialmente constituídos. A riqueza dos
exemplos e a forma como são correlacionados os eventos com as categorias
sociais em formação, neste caso a do tempo, conferem a este livro de Elias as
mesmas qualidades presentes em suas outras obras.
A análise histórica empreendida por Elias é de suma importância
pois lembra-nos que na evolução dos processos de determinação do tempo (que
não tem começo, nem fim) foram se dando diversas alterações, como por
exemplo no que se refere ao monopólio dessa determinação que, no início
cabia aos sacerdotes, passando a ser dividida entre estes e as autoridades
leigas, para finalmente passar a ser monopólio exclusivo do Estado. “A
autodisciplina em matéria de tempo, a exemplo de outras capacidades sociais, só
se desenvolveu muito lentamente ao longo dos séculos e só atingiu sua forma
atual ligando-se ao surgimento de exigências sociais específicas”, diz o
autor.
As comparações com as experiências do tempo, que
caracterizam as sociedades “menos avançadas”, também constituem rico
material para Elias demonstrar sua tese de que a percepção do tempo é
socialmente adquirida. Estudando sociedades como as dos índios norte-americanos,
em que “o código social comporta poucos sinais de caráter temporal, e os
raros sinais que existem estão ligados, sem exceção, a ocasiões precisas”
e, entre elas, a dos Sioux, que não possuem nenhuma palavra para expressar
‘tempo’ e onde não se sabe o que é chegar ‘atrasado’ ou o significado
de ‘esperar’, Elias tem a confirmação de que a noção do tempo é uma
categoria social.
Podemos lembrar aqui que mesmo no seio das sociedades ditas
avançadas há diferenças no que se refere à percepção do tempo. Elias
indica que um dos problemas relativos ao tempo é colocado pela “percepção
dos eventos que sucedem-se no tempo”, que é resolvido, segundo ele, pela
“capacidade característica da espécie humana de apreender num relance e, por
isso mesmo, ligar numa mesma seqüência contínua de acontecimentos aquilo que
sucede “mais cedo” e o que sucede “mais tarde”, o “antes” e o “depois”.
Nessa representação, a memória desempenha papel decisivo pois permite
“enxergar em conjunto aquilo que não se produz num mesmo momento”.
Tomando-se um exemplo literário, o personagem Hans Castorp,
de Thomas Mann na Montanha Mágica, verificamos que essa percepção também
pode ser influenciada pelo meio em que se encontra o indivíduo, mesmo que no
interior de uma sociedade considerada avançada. Hans Castorp, ao instalar-se após
três semanas na clínica em Davoz-Platz, toma consciência de que nessa nova
vida o mesmo dia parece que se repete sempre e que, por isso, as formas do tempo
se perdem. “Mas, como é sempre o mesmo dia, no fundo é pouco correto falar
em ‘repetição’, seria necessário falar de identidade, de um presente imóvel,
ou de eternidade”, diz o narrador.
A reflexão de Elias sobre o tempo apresenta a questão em
suas diversas facetas. O tempo é uma categoria cultural, um processo sócio-cultural
que depende de um aprendizado, que tem como base um patrimônio comum de saber.
Segundo o autor, os problemas relativos ao tempo suscitaram especulações metafísicas,
aparentemente não suscetíveis de verificação objetiva e entregues à
fantasia de cada um. “Entretanto, a síntese em processo de desenvolvimento
– representada, provavelmente desde o nascimento dos Estados, por um conceito
de tempo – e o desenvolvimento das técnicas e instituições de medição do
tempo que está ligado a ela prestam-se a uma análise das mais exatas e não
deixam margem para especulações.”
Mas a questão da eternidade permanece em aberto, pois, mesmo
sendo considerada uma construção humana, guarda ainda um mistério a ser
explicado. Nossa percepção do tempo no que se refere aos eventos que se
sucedem, isto é, o “passar do tempo”, é ainda a grande angustia que se
coloca para o homem. A eternidade, como dizia Jorge Luis Borges, “é a soma de
todos nossos ontens. São todos os nossos ontens, de todos os ontens dos seres
conscientes. Todo o passado, esse passado que não sabemos quando começou. E
também todos os presentes. Esse presente que engloba todas as cidades, todos os
mundos, todo o espaço entre os planetas. E enfim o futuro. O futuro que ainda não
se realizou mas que, no entanto, existe. (...) O problema do tempo nos toca mais
de perto que outros problemas metafísicos pois o problema do tempo é nosso
problema: Quem sou eu? Quem somos nós?”
Cláudia
Perrone-Moisés é professora do Departamento de Direito Internacional da
Faculdade de Direito da USP