Norbert Elias e o dilema do tempo
Para o sociólogo alemão, o tempo é um habitus, um mecanismo de auto-controle, ou seja, um traço característico do processo civilizador e um símbolo social resultante de um longo processo de aprendizagem


Por Cláudia Perrone-Moisés

O que é o tempo? Como dizia Santo Agostinho em suas Confissões: “Quando ninguém me pergunta, eu sei, quando se trata de explicá-lo, já não sei mais. Minha alma queima, queima em saber o que é o tempo.” De forma análoga se inicia a reflexão de Norbert Elias em seu recém publicado livro Sobre o Tempo (Jorge Zahar, tradução de Vera Ribeiro, 163 págs., R$ 17,00): “‘Quando não me perguntam sobre o tempo, sei o que ele é’, dizia um ancião cheio de sabedoria. ‘Quando me perguntam, não sei.’” A alma de Elias queima em saber “como medir uma coisa que não se pode perceber pelos sentidos. Algo que não se pode ver, tocar, ouvir, saborear, nem respirar. Uma ‘hora’ é algo invisível”.

Este livro constitui uma reflexão acerca da noção de tempo, na qual são aplicadas as categorias já conhecidas deste importante sociólogo alemão. Em o Processo Civilizador, obra fundamental para a compreensão de Elias, tratou ele de demonstrar, por meio da análise dos costumes, como o indivíduo teve o controle de suas pulsões transferido de uma proibição externa para a criação de um mecanismo estável de auto-controle. A estabilidade dos mecanismos de auto-controle proporciona a criação do que Elias denomina habitus, que seria um “saber incorporado” ou “segunda natureza” do homem civilizado. O tempo é assim, para Elias, um habitus, um mecanismo de auto-controle, ou seja, um traço característico do processo civilizador e um símbolo social resultante de um longo processo de aprendizagem. “A maneira como os homens vivem o tempo nas sociedades rigorosamente disciplinadas em matéria temporal constitui um exemplo, dentre muitos outros, de estruturas de personalidade que, por mais que sejam adquiridas, nem por isso são menos coercitivas de que as peculiaridades biológicas”, lembra Elias.

A coerção do tempo é de natureza social, mas também repousa sobre dados naturais, como o envelhecimento. “O desenvolvimento de uma pessoa humana caracteriza-se por um entrecruzamento de processos biológicos e sociais.” Se pensarmos no calendário, que representa a noção de tempo em seu atual estágio de desenvolvimento, podemos perceber que chegamos a uma “síntese de nível altíssimo, uma vez que relaciona posições que se situam, respectivamente, na sucessão de eventos físicos, no movimento da sociedade e no curso de uma vida individual”.

Uma das propostas de Elias é tomar a noção de tempo, enquanto individualização de uma regulação social, como um verdadeiro paradigma do processo civilizador. Sua reflexão sobre o tempo pretende corrigir a imagem de um mundo cindido entre “indivíduo”, “sociedade” e “natureza” e proporcionar uma visão da “imbricação mútua e interdependência” entre as três esferas. No que se refere à relação entre “natureza” e “sociedade”, diz Elias: “Esses dois campos são colocados como independentes um do outro, como independentes gostariam de ser os grupos de especialistas que se dedicam ao estudo de um ou do outro. Na realidade, a humanidade e portanto a ‘sociedade’, a ‘cultura’, etc, não são menos ‘naturais’ nem menos integrantes de um único e mesmo universo do que os átomos ou as moléculas.”

Segundo Elias, o tempo é antes de tudo um desafio para a Sociologia na medida em que “da coexistência dos homens provém algo que eles não compreendem, que lhes parece enigmático e misterioso”. “O tempo é um símbolo, mas, assim como em relação a outros símbolos criados por eles próprios, os homens não possuem um consciência clara de sua natureza e modo de funcionamento. (...)Ainda hoje, o estatuto ontológico do tempo permanece obscuro, de modo geral. Meditamos sobre ele sem saber muito bem com que tipo de objeto estamos lidando. O tempo é um objeto natural, um aspecto dos processos naturais, um objeto cultural? Ou será em virtude de o designarmos por um substantivo que nos iludimos com seu caráter de objeto? O que é, afinal, que realmente indicam os relógios, ao dizermos que dão a hora.?” Daí a grande preocupação de Elias em desvendar, ao longo das eras, como se dá a relação dos homens com o tempo e com que objetivo os seres humanos necessitam determinar o tempo.

Para Elias, as tentativas de resolver a questão no plano filosófico ou no campo da Física, que são as formas tradicionais de tratamento da questão, não dão conta do problema. Para a Física, o tempo constitui um dado objetivo do mundo que só se distingue dos demais objetos da natureza por não ser perceptível. Para a filosofia, trata-se de uma forma inata de experiência, uma maneira de captar em conjunto acontecimentos que se assentam numa particularidade da consciência humana. Em Kant, lembra Elias, espaço e tempo representam uma síntese a priori . Dado natural para as duas concepções, o tempo é objetivo para a Física e enraizado na natureza humana para a Filosofia. “A auto-regulação ‘temporal’ com que deparamos em quase todas as sociedades avançadas não é um dado biológico, ligado à natureza humana, nem tampouco um dado metafísico, ligado a algum a priori imaginário, porém um dado social, um aspecto da evolução social da estrutura de personalidade, que, como tal, torna-se parte integrante da individualidade de cada um”, adverte Elias.

Como vemos, sua hipótese é a de que o tempo não é “natural” e sim uma instituição social que resulta de um longo processo de aprendizagem. Esse aprendizado é histórico, uma vez que o indivíduo só pode construir algo a partir de um patrimônio de saber já adquirido. Ao mesmo tempo, essa aprendizagem é individual, pois mesmo a criança, para que possa desempenhar seu papel de adulto, desenvolve um sistema de auto-disciplina conforme essa instituição social que é o tempo: nas sociedades industrializadas o tempo exerce de fora para dentro, sob a forma de relógios, calendários e outras tabelas de horários, uma coerção que suscita o desenvolvimento da autodisciplina no indivíduo. “A transformação da coerção exercida de fora para dentro pela instituição social do tempo num sistema de autodisciplina que abarque toda a existência do indivíduo ilustra, explicitamente, a maneira como o processo civilizador contribui para formar os habitus sociais que são parte integrante de qualquer estrutura da personalidade”, aponta Elias.

Elias demonstra suas afirmações, ao longo do livro, da forma que lhe é característica (e é nesse ponto que reside o interesse deste livro). Procurando delimitar a noção de tempo através das particularidades de cada sociedade no curso da história, e confrontando as diversas características históricas e culturais no que se refere à relação do homens com o tempo, o autor detecta em cada exemplo que apresenta, que a noção de tempo tem como peculiaridade ser um dos habitus socialmente constituídos. A riqueza dos exemplos e a forma como são correlacionados os eventos com as categorias sociais em formação, neste caso a do tempo, conferem a este livro de Elias as mesmas qualidades presentes em suas outras obras.

A análise histórica empreendida por Elias é de suma importância pois lembra-nos que na evolução dos processos de determinação do tempo (que não tem começo, nem fim) foram se dando diversas alterações, como por exemplo no que se refere ao monopólio dessa determinação que, no início cabia aos sacerdotes, passando a ser dividida entre estes e as autoridades leigas, para finalmente passar a ser monopólio exclusivo do Estado. “A autodisciplina em matéria de tempo, a exemplo de outras capacidades sociais, só se desenvolveu muito lentamente ao longo dos séculos e só atingiu sua forma atual ligando-se ao surgimento de exigências sociais específicas”, diz o autor.

As comparações com as experiências do tempo, que caracterizam as sociedades “menos avançadas”, também constituem rico material para Elias demonstrar sua tese de que a percepção do tempo é socialmente adquirida. Estudando sociedades como as dos índios norte-americanos, em que “o código social comporta poucos sinais de caráter temporal, e os raros sinais que existem estão ligados, sem exceção, a ocasiões precisas” e, entre elas, a dos Sioux, que não possuem nenhuma palavra para expressar ‘tempo’ e onde não se sabe o que é chegar ‘atrasado’ ou o significado de ‘esperar’, Elias tem a confirmação de que a noção do tempo é uma categoria social.

Podemos lembrar aqui que mesmo no seio das sociedades ditas avançadas há diferenças no que se refere à percepção do tempo. Elias indica que um dos problemas relativos ao tempo é colocado pela “percepção dos eventos que sucedem-se no tempo”, que é resolvido, segundo ele, pela “capacidade característica da espécie humana de apreender num relance e, por isso mesmo, ligar numa mesma seqüência contínua de acontecimentos aquilo que sucede “mais cedo” e o que sucede “mais tarde”, o “antes” e o “depois”. Nessa representação, a memória desempenha papel decisivo pois permite “enxergar em conjunto aquilo que não se produz num mesmo momento”.

Tomando-se um exemplo literário, o personagem Hans Castorp, de Thomas Mann na Montanha Mágica, verificamos que essa percepção também pode ser influenciada pelo meio em que se encontra o indivíduo, mesmo que no interior de uma sociedade considerada avançada. Hans Castorp, ao instalar-se após três semanas na clínica em Davoz-Platz, toma consciência de que nessa nova vida o mesmo dia parece que se repete sempre e que, por isso, as formas do tempo se perdem. “Mas, como é sempre o mesmo dia, no fundo é pouco correto falar em ‘repetição’, seria necessário falar de identidade, de um presente imóvel, ou de eternidade”, diz o narrador.

A reflexão de Elias sobre o tempo apresenta a questão em suas diversas facetas. O tempo é uma categoria cultural, um processo sócio-cultural que depende de um aprendizado, que tem como base um patrimônio comum de saber. Segundo o autor, os problemas relativos ao tempo suscitaram especulações metafísicas, aparentemente não suscetíveis de verificação objetiva e entregues à fantasia de cada um. “Entretanto, a síntese em processo de desenvolvimento – representada, provavelmente desde o nascimento dos Estados, por um conceito de tempo – e o desenvolvimento das técnicas e instituições de medição do tempo que está ligado a ela prestam-se a uma análise das mais exatas e não deixam margem para especulações.”

Mas a questão da eternidade permanece em aberto, pois, mesmo sendo considerada uma construção humana, guarda ainda um mistério a ser explicado. Nossa percepção do tempo no que se refere aos eventos que se sucedem, isto é, o “passar do tempo”, é ainda a grande angustia que se coloca para o homem. A eternidade, como dizia Jorge Luis Borges, “é a soma de todos nossos ontens. São todos os nossos ontens, de todos os ontens dos seres conscientes. Todo o passado, esse passado que não sabemos quando começou. E também todos os presentes. Esse presente que engloba todas as cidades, todos os mundos, todo o espaço entre os planetas. E enfim o futuro. O futuro que ainda não se realizou mas que, no entanto, existe. (...) O problema do tempo nos toca mais de perto que outros problemas metafísicos pois o problema do tempo é nosso problema: Quem sou eu? Quem somos nós?”

Cláudia Perrone-Moisés é professora do Departamento de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP