As obras do sociólogo alemão Norbert Elias vêm sendo
publicadas no Brasil desde 1990. É responsável pela maioria delas a editora
Jorge Zahar – O Processo Civilizador, A Sociedade dos Indivíduos,
Mozart, Sociologia de um Gênio, Os Alemães, Sobre o Tempo
e A Sociedade de Corte e Lógicas de Exclusão (ambos no prelo)
–, enquanto a Bertrand Brasil publicou A Condição Humana e,
recentemente, Envolvimento e Alienação (tradução de Álvaro de Sá,
352 págs., R$ 38,00). Apesar da demora na tradução para o português, é de
louvar que a obra de Elias finalmente esteja chegando ao público brasileiro.
Envolvimento e Alienação inicia-se por uma nota do
tradutor em que se justifica a tradução do termo inglês detachment (no
original alemão Distanzierung e, na tradução francesa, distanciation)
para alienação e não para distanciamento. Como ele mesmo diz, “talvez os
seguidores mais ortodoxos de Norbert Elias estranhem”, mas “isso procurou
melhor atender à inserção do autor no intertexto filosófico e à projeção
que deverá ganhar nos próximos anos, pela proposta que faz de uma
epistemologia dinâmica e sobre as implicações sociais (...); o distanciamento
preconizado por N. Elias é uma forma de alienação dos fatos para melhor
conhecê-los, para melhor agir, envolvendo-se neles já em outro nível. Nesse
sentido é que traduzimos distanciamento por alienação; notando que,
opostamente a Hegel e Marx, a alienação em Elias é positiva e fundamental
para a preservação da paz, do bem-estar e para o desenvolvimento”.
Apesar disso, a tradução escolhida causa certa estranheza.
O distanciamento subentende um simples afastamento, ao passo que a alienação
significa desde apartar, desviar e afastar, até alucinar ou desvairar. Que cada
leitor julgue por si mesmo.
Como o próprio título indica, Elias trabalha neste livro
com dois conceitos básicos para sua análise: o envolvimento e a alienação (distanciamento).
Não sendo considerados por Elias dois conjuntos de fenômenos independentes, é
“o continuum que reside entre esses dois pólos” o que constitui, para ele,
a questão principal, já que podem existir diferentes graus de alienação e
envolvimento, e que as variações individuais podem ser limitadas por padrões
coletivos.
Para o autor, os homens conseguiram, no que se refere às
suas relações com a natureza, “um nível relativamente alto de contenção
e, portanto, de alienação”, o que lhes tem permitido “aumentar e expandir
sistematicamente o fundo social de conhecimento nesse campo”. Isto é, no que
se refere à interação com a natureza, os homens conseguem lidar com os
desafios que se colocam, em geral, de forma adequada, ou seja, distanciada,
apesar de ainda subsistirem formas envolvidas de pensamento em relação à
natureza. “Como resultado, os perigos que ameaçam a humanidade vindos dos
processos naturais, naqueles níveis da natureza não-humana, contidos na órbita
terrestre têm decrescido consideravelmente”, diz Elias.
Hoje, os perigos no que se refere à relação dos homens com
a natureza parecem decorrer mais de suas ações, já que, impondo um domínio
caótico sobre ela, produzem problemas ambientais, como o aquecimento global e a
poluição transfronteiriça, que não constituem conseqüências naturais, mas
que correm o risco de se tornar incontroláveis.
No que diz respeito às questões humanas, estamos tão
envolvidos que não conseguimos enfrentar corretamente essas questões: “A
contenção e alienação na produção e no uso do conhecimento em níveis
humanos, e portanto, no trato dos processos sociais, são muito mais baixas.
Assim, esse tipo de conhecimento também mostra nível mais baixo de congruência
com a realidade. Está fortemente imbuído de fantasias e moldado pelos desejos
e medos de curto prazo.”
Elias se preocupa, como sociólogo, com o fato de que as ciências
sociais, em geral, estejam tão envolvidas com seus objetos de estudo que não
podem avaliar corretamente os problemas que estão em jogo em determinada situação
e, por isso, não alcançam soluções adequadas. Uma ressalva é feita, no
entanto, no que diz respeito ao trabalho dos antropólogos: por estudarem
sociedades às quais não pertencem, estariam menos envolvidos nos problemas que
estudam, podendo analisar as questões de forma mais distanciada. (Afirmação,
diga-se de passagem, passível de discussão quanto à sua verificação empírica,
e cada vez mais tematizada, pelos próprios antropólogos.)
Na primeira parte do livro, “Questões de Envolvimento de
Alienação”, Elias analisa as afirmações acima apontadas propondo uma
importante questão, a de se saber se o que foi conseguido em relação às forças
não humanas, em termos de autocontrole e de controle dos acontecimentos
externos, por meio de um distanciamento necessário, seria possível no domínio
dos fenômenos sociais.
Essa questão revela o problema concernente às funções das
ciências sociais nesta empreitada. Como aponta Elias, “a tarefa dos
cientistas sociais é pesquisar e fazer as pessoas entenderem os padrões que
formam, quando juntas, a natureza e a configuração mutante de tudo que as liga.
Os próprios pesquisadores fazem parte desses padrões. Não podem evitar
vivenciá-los, diretamente ou por identificação, porque deles participam; e
quanto maiores as solicitações e as tensões a que eles e seus grupos estão
submetidos, mais difícil lhes é realizar a operação mental que fundamenta
todas as buscas científicas: alienar-se do papel de participante imediato e da
perspectiva limitada que isso oferece”.
No tocante às questões humanas que devem ser enfrentadas
pelas ciências sociais, uma das preocupações de Elias refere-se às guerras e
revoluções, lembrando que para essas questões “poucas pessoas esperariam
ajuda ou conselho dos cientistas sociais; e se eles o oferecessem, poucos
estariam dispostos a aceitá-los ou, mesmo, a ouvi-los”.
A corrida armamentista e a guerra atômica são exemplos para
Elias de como, no plano social, “o movimento circular de emotividade
relativamente alta de pensamento e ação, que se perpetua em resposta aos
perigos incontroláveis vindos de grupos humanos e vice-versa, continua em nível
comparável ao das relações pré-científicas com a natureza não-humana dos
dias primitivos”. Para Elias, ao lado da ameaça das armas existe a ameaça
das crenças que infundem nos cidadãos “ideais sociais e contra-ideais
depreciativos, assim como visões elogiosas e odiosas, relativamente impessoais”.
Essas ameaças, reforçando-se mutuamente, originam uma “ininterrupta corrente
de estigmatização recíproca” entre os Estados.
Enquanto no plano interno existe o que Max Weber denominou
“monopólio estatal da violência” – que faz com que haja um controle da
violência entre os membros de um Estado, o que para Elias, conjuntamente com o
monopólio da tributação, participa do caráter civilizador que a unidade
estatal confere em seu processo de desenvolvimento interno –, no plano
internacional, os Estados podem usar livremente da violência física em suas
relações, conservando nelas, assim, um caráter primitivo. Para o indivíduo,
essa convivência com dois códigos de conduta, diferentes e contraditórios,
pode trazer perplexidade. “Em um dos níveis, estão terminantemente proibidos
de agredir violentamente e de matar pessoas; em outro, exige-se como dever que
se preparem para enfrentar e empregar a violência nas relações com outros
homens.”
O ponto-chave no caso das relações interestatais é a falta
de um poder central capaz de controlar as lutas entre os Estados e forçar o
cumprimento das regras. Considerada do ponto de vista do sistema internacional,
essa questão se refere diretamente à incapacidade que têm as Nações Unidas
ou os organismos regionais, como a Otan, de resolver os conflitos e manter a
segurança internacional.
Questão amplamente debatida no campo do direito
internacional, a falta de um terceiro capaz de regular os conflitos, chamado por
Norberto Bobbio de “terceiro ausente”, tem sido debatida em diversos níveis.
A dúvida que se coloca se relaciona com o fato de que, para que houvesse esse
terceiro supranacional, correr-se-ia o risco de pregar um espaço político único
para o planeta, trazendo como conseqüência os riscos de hegemonia de um só
Estado, como o que vem ocorrendo com os desdobramentos da crise do Golfo. Não
teriam os Estados Unidos, no caso da operação “raposa no deserto”, agido
como entidade supranacional, sem mandato da comunidade internacional e, portanto,
de forma hegemônica?
Como propõe Elias, no plano da especulação, “podemos
dizer que muitas pessoas não desejariam ver a humanidade transformada em
monarquia absoluta ou em ditadura aberta ou disfarçada. Se não é seu desejo
esse domínio de uma nação ou de um grupo de nações sobre todas as outras,
então, manter a humanidade permanentemente numa condição pluralista pode
exigir mais alto nível de autocontenção e de alienação”.
Este é um dos grandes paradoxos que pode ser verificado na
relação entre Estados soberanos. Partindo da idéia de que não é possível
um poder que se encontre acima dos Estados, seu processo de autocontenção é
explicado, pelas teorias clássicas das Relações Internacionais, de dois modos:
na tradição realista, os Estados são controlados pela chamada “balança de
poder”, isto é, a própria dinâmica das relações de poder entre os Estados
impõe limites aos conflitos; na segunda, a tradição racionalista, entende-se
que os Estados, buscando a cooperação, estabelecem instituições (como a ONU)
que podem regular o uso da soberania. Questão que, como podemos ver, continua
em aberto e que Elias nos propõe à reflexão de maneira extremamente lúcida.
O problema do envolvimento dos homens, na corrida
armamentista e nas guerras, intriga especialmente Elias. O sentimento de que a
identidade nacional pressupõe um exército forte para se firmar é uma
realidade. O que está em jogo nas guerras para um Estado, diz Elias, é um
processo contínuo de autoperpetuação, mas é também uma questão de prestígio,
“bem como o orgulho e a auto-estima de muitos de seus cidadãos, subordinados
ao potencial de força de sua organização militar”. Um exemplo histórico,
fornecido por Noam Chomsky (Novas e Velhas Ordens Mundiais, 1996), que
ilustra a tese de Elias, aponta que no final da segunda guerra, nos EUA, os líderes
empresariais reconheceram que os gastos sociais poderiam estimular a economia,
mas muitos preferiram a alternativa militar, por razões que tinham a ver com
privilégio e poder e não com racionalidade econômica.
Assim, um aspecto de certa forma negligenciado, no que toca
aos perigos que os grupos humanos constituem uns para os outros, é o emocional,
ou seja, “o prazer que as pessoas experimentam com a sensação de que o grupo
a que pertencem é superior aos outros”. Para que o ímpeto do processo que
gera a violência pudesse ser contido seria necessário um elevado nível de
alienação (distanciamento), que o aspecto emocional parece impedir.
Neste sentido, a análise que Elias empreendeu em Os Alemães
evidenciou o quanto os fatores emocionais, como a convicção coletiva de
superioridade e a falta de racionalidade no que diz respeito ao extermínio dos
judeus, foram importantes no apoio que o povo alemão deu a Hitler. Além disso,
como Elias era também alemão, a análise dessas características emocionais só
lhe foi possível graças a um esforço exemplar de autodistanciamento, do qual
tinha ele plena consciência.
Diante dos dados à nossa disposição e da existência de um
fundo comum de conhecimento no que se refere às causas dos conflitos, assim
como dos diagnósticos de situações e caminhos possíveis de soluções, como
explicar que os homens não passam, por meio de distanciamento e autocontenção,
controlar os conflitos humanos? A resposta deve fugir daquela atitude dita “realista”,
de considerar que as guerras não só existiram sempre, como também continuarão
a existir e que seriam elas um produto da natureza humana. Para que os homens
possam resolver seus conflitos, seria necessário um distanciamento capaz de pôr
fim ao fatalismo reinante.
Para ilustrar tal possibilidade, Elias recorre a um conto de
Edgar Allan Poe, que abre a segunda parte do livro, Os Pescadores e o Turbilhão.
Dois irmãos náufragos estão sendo arrastados para o abismo de um rodamoinho.
Enquanto o mais jovem, graças a seu distanciamento, consegue acalmar-se e
perceber que os objetos cilíndricos descem mais lentamente, toma a atitude
correta, amarrando-se a um barril e com isso alcançando a salvação, o outro,
totalmente envolvido na situação, capturado pelo medo, não consegue mover-se,
sendo arrastado pelo turbilhão.
Assim, a importância da tomada de consciência dos processos
de envolvimento e alienação, ilustrada pelo conto de Poe, como afirma Elias,
“pode ser útil para aliviar a coação que esse tipo de processo impõe aos
seres humanos, tanto no pensamento como na ação”, impedindo “o ponto de não
retorno do turbilhão em que o ser humano está sendo arrastado”.
Essas são, em linhas gerais, as inquietações que movem
Norbert Elias na busca de soluções para os problemas humanos, utilizando-se,
com grande precisão, dos conceitos de envolvimento e alienação (distanciamento).
Constituindo mais um livro estimulante deste grande sociólogo, a publicação
de Envolvimento e Alienação vem contribuir para que sua obra adquira a
projeção merecida entre nós.
Cláudia
Perrone-Moisés é professora do Departamento de Direito Internacional da
Faculdade de Direito da USP