Por Cláudio Perrone-Moisés

Os Estabelecidos e os Outsiders (tradução de Vera Ribeiro, Jorge Zahar, 228 págs., R$ 29,00), livro do sociólogo alemão Norbert Elias, publicado pela primeira vez em 1965, é fruto de um estudo realizado pelo professor John Scotson, interessado em delinqüência juvenil, numa comunidade inglesa (batizada no livro com o nome de Winston Parva), próxima de Leicester, onde Elias lecionava desde 1954.

 

O estudo de uma pequena comunidade, onde a diferença entre seus moradores consistia apenas no tempo de residência, tornou-se o material que serviria para Elias verificar uma recorrência nas relações que se estabelecem entre os grupos: praticamente em todas as sociedades, os diversos grupos estigmatizam outros grupos como sendo de status inferior e de menor valor.
Para Elias, a peculiaridade de Winston Parva reside no fato de não se observar ali o que, em geral, esperamos encontrar na discriminação entre grupos. Na pequena comunidade estudada por Elias, não há diferenças relacionadas à nacionalidade, "cor'" "raça", ascendência étnica, tipo de ocupação, de renda ou nível escolar. A única diferença diz respeito ao tempo de residência. A partir desse caso, Elias construiu o que seria uma de suas duplas conceituais mais importantes: os estabelecidos e os outsiders (marginais).
Verificando que os moradores "novos" são estigmatizados pelos moradores "antigos", graças ao simples fato de serem "novos'"e, portanto, não estarem integrados nos esquemas de relações já sedimentadas entre os moradores "antigos", Elias aponta para a evidência de não haver praticamente nenhuma sociedade que não tenha encontrado "um meio tradicional de usar outra sociedade como sociedade outsider, como uma espécie de bode expiatório para suas próprias faltas."
O expediente utilizado por Elias para chegar às suas conclusões é a do juízo reflexivo. Conforme nos lembra Frederico Neiburg, na "Apresentação à Edição Brasileira", a "reflexividade" singular é uma das características mais notáveis da obra de Elias: a partir de dados empíricos aparentemente insignificantes, toma ele distância das formas consagradas de enunciar os problemas em ciências sociais. Em os Estabelecidos e os Outsiders, elegendo Winston Parva como caso exemplar, Elias passa da pesquisa dos problemas mais restritos de uma comunidade para problemas teóricos mais amplos, que lhe permitem chegar a um conceito ou regra geral. Tendo em foco o caso exemplar, diz Elias: "Atentamos para as regularidades de um nexo de acontecimentos, o que nos possibilita então testar, por meio da investigação de outros casos, se tais regularidades são observáveis em todos eles e se não forem, por que isso acontece."
Mas quais são as características mais importantes da pequena comunidade para que ela se tornasse um caso exemplar e, "como que em miniatura, um tema universal"? Primeiramente, como já foi mencionado, o fato de não estar presente nenhuma das características geralmente imaginadas quando se trata de estabelecer as diferenças entre grupos. Assim, o que importava era investigar o porquê de a distinção existente (tempo de residência) já ser suficiente para que um grupo estigmatizasse o outro.
Por meio do estudo do papel da fofoca, Elias nos mostra que a relação entre grupos passa necessariamente pela questão da imagem que os grupos têm de si mesmos e da importância da preservação dessa imagem, que pode ser resguardada ou afirmada por intermédio da inferiorização de outro grupo. A própria existência de um grupo de outsiders, que não "partilham do reservatório de lembranças comuns nem tampouco, ao que parece, das mesmas normas de respeitabilidade do grupo estabelecido age como um fator de irritação; é percebida pelos membros desse grupo como um ataque a sua imagem e a seu ideal do nós. A rejeição e estigmatização dos outsiders constituem seu contra-ataque".
Os estabelecidos tendem a considerar que os outsiders lhes ameaçam a superioridade, ao mesmo tempo que a circulação de fofocas depreciativas e a maculação da auto-imagem do outro grupo podem constituir traços constantes de sua conduta. A estigmatização, muitas vezes, associa-se a um tipo específico de fantasia coletiva criada pelo grupo estabelecido. "O relacionamento entre a velha e a nova comunidade proletárias de Winston Parva mostrou o preconceito, in situ, em seu contexto social, como mais um aspecto das crenças sociais de um grupo estabelecido, em defesa de seu status e poder contra o que é sentido como uma agressão dos outsiders", diz Elias.
Frederico Neiburg, nos alerta, em seu estudo para o Dossiê Norbert Elias (Edusp 1999), para o fato de que a contribuição do sociólogo para uma teoria das relações de poder consiste em mostrar que a hierarquia social (e a desigualdade) é também um assunto de opinião, já que o status é inseparável de sua representação. A opinião (ou a auto-imagem) que o grupo tem de si mesmo é de suma importância para Elias, pois quanto mais seguros se sentem os membros do grupo, menor a discrepância entre a imagem e a realidade e menor será sentida a necessidade de estigmatizar outros grupos.
Do ponto de vista dos outsiders, o resultado da estigmatização - além da interiorização do preconceito, que traz reflexos para a auto-imagem do grupo - pode ser também um preconceito contra os estabelecidos. Mas, na medida em que não possuem poder para estigmatizar o outro grupo, podem transformar a estigmatização em atos de violência. Conforme acentua Elias: "Enquanto os quadros sociais são relativamente fracos, seu `preconceito' contra os estabelecidos não tem contundência, eles não conseguem traduzi-lo em atos de discriminação. Exceto, quem sabe, sob a forma da delinqüência, do vandalismo ou de outras transgressões da ordem estabelecida; particularmente entre os jovens, é freqüente esses serem os únicos meios de que dispõem os grupos tratados com frieza, excluídos e agredidos em sua auto-estima, para conseguir alguma coisa dos grupos estabelecidos."
Mas é necessário ir além. Se praticamente todas as sociedades estigmatizam outros grupos e se essa prática é baseada no chamado preconceito, que tradicionalmente é usado como símbolo unificador para o desprezo de grupos em palavras e atos, o que geralmente não se esclarece é a natureza do preconceito. Elias chama a atenção, nesse particular, para dois pontos que devem ser investigados: o orgulho e o medo. O orgulho está presente, como sabemos, tanto no plano individual como no coletivo. Um certo orgulho pessoal e grupal faz parte da vida humana. O orgulho é variável e extremamente sensível, como nos lembra Elias, e a fragilidade decorrente é um dos fatores responsáveis pela onipresença da discriminação entre os grupos humanos. Tornando-se uma forma positiva de auto-avaliação e um valor que alguém atribui a si mesmo como indivíduo ou membro de um grupo, tal sentimento tem papel fundamental nas tentativas de confirmar ou elevar esse valor por intermédio de qualquer meio, inclusive às custas do valor de outros grupos. O reconhecimento de que o valor do próprio grupo pode ser aumentado sem diminuir o valor de outro grupo ainda não está muito difundido, diz Elias.
Outro fator importante a considerar quando se investiga a natureza do preconceito é o medo. Os grupos humanos vivem com medo um dos outros sem que se possa esclarecer, muitas vezes, a sua origem ou as suas razões. Os grupos representam, uns para os outros, perigo em potencial. Geralmente, procura-se um "culpado", o grupo que teria dado início a essa onda de medo recíproca.
Ocorre que, como bem aponta Elias, procurar o início de um conflito é geralmente inútil, pois no encontro de dois pontos em movimento não há como se estabelecer o seu ponto de partida. Daí porque essa não é uma forma apropriada de enfrentar a questão. Tais questões permanecem, assim, como tópicos a serem enfrentados numa análise mais profunda das relações entre os diversos grupos.
No "Posfácio à Edição Alemã", inserido na edição brasileira, Elias faz menção de duas situações nas quais a relação estabelecidos-outsiders pode ser considerada paradigmática: o nazismo e as organizações racistas do tipo Ku-Klux-Klan. O movimento nazista, diz Elias, "foi um bom exemplo para um modelo de relação que é possível achar no mundo todo. Ele eleva a si próprio ao coroamento da humanidade, ao tipo humano mais valioso, que é convocado pela natureza para dominar todo os outros grupos. Os judeus eram considerados como contraponto, como parte menos valiosa da humanidade".
A reflexão em torno do nazismo é uma recorrente na obra de Elias. Nada mais natural, visto ser o resultado de suas próprias convicções, segundo as quais o destino social de um grupo tem reflexos no comportamento do indivíduo e na consciência do "eu". É o próprio Elias que, em Elias por ele mesmo (ainda não traduzido no Brasil), reconhece que as experiências relacionadas à sua condição de judeu na Alemanha - estar ligado culturalmente à Alemanha, mas ao mesmo tempo inserido num grupo social menosprezado, cujo destino social teria reflexos em seu comportamento bem como na consciência que tinha de si mesmo - foram, em muitos aspectos, inseridas na teoria sociológica dos estabelecidos e outsiders.
A questão da auto-imagem assume importância fundamental na análise do nazismo. A incerteza alemã em relação a seu status, se comparado com o das demais nações européias, foi uma constante até 1870, acarretando uma fragilidade para a identidade alemã, assim como para a certeza do seu status. Daí porque os judeus, considerados outsiders, causavam tanta irritação. Na falta de certeza em relação à auto-imagem do próprio grupo, tudo que, de algum modo, fosse diferente poderia colocar em risco a sua identidade e o seu próprio valor. Hannah Arendt , ao analisar o papel da propaganda nazista em Origens do Totalitarismo, também apontara para o fato de que a propaganda havia transformado o anti-semitismo em um princípio de autodefinição. A propaganda fornecia à massa de indivíduos atomizados, indefiníveis, instáveis e fúteis, um meio de autodefinição e identificação que restaurava em parte o respeito por si mesmos, criando uma estabilidade fictícia.
A relação entre a estigmatização e a existência de um tipo de fantasia coletiva criada pelo grupo estabelecido torna-se patente no nazismo. Em Os Alemães, Elias sublinha que a tentativa de destruir o povo judeu foi um dos mais impressionantes exemplos do poder que uma crença pode exercer sobre as pessoas. Os nacional-socialistas não precisavam de provas para justificar o fato de considerarem os judeus os piores inimigos da Alemanha, sua convicção era simplesmente a de que isso tinha sido determinado pela natureza, pela ordem mundial e seu criador.
Mas, do ponto de vista dos judeus, quais seriam as conseqüências dessa estigmatização sofrida? Até que ponto poderíamos falar em interiorização do preconceito? Para Elias, um dos fatores que pode modificar o impacto da situação nos membros do grupo de outsiders é a posse de uma tradição cultural própria. A tradição, como diz Elias, "especialmente quando incorpora, como no caso dos judeus, uma vigorosa relação com o saber livresco e uma alta valorização das realizações intelectuais, tem a probabilidade de proteger as crianças desses grupos, até certo ponto, do efeito traumático exercido em seu desenvolvimento pela exposição à estigmatização perpétua por parte do grupo estabelecido."
A atualidade da reflexão de Norbert Elias em Os Estabelecidos e Outsiders salta aos olhos. O próprio autor, em 1987, utilizando-se dessa dupla conceitual, escreve o último capítulo da Sociedade dos Indivíduos, em que se preocupa com a integração supranacional em marcha na Europa e as tensões decorrentes das imigrações. Se as tensões existentes em quase todas as sociedade modernas, geradas pela exclusão social, qualquer que seja sua causa, constituem uma constante no mundo atual, a importância deste livro de Norbert Elias se encontra no fato de sugerir, como bem aponta Frederico Neiburg, "caminhos para criticar e reformular algumas das questões que organizam a agenda da ciência social contemporânea em torno de expressões como `exclusão' e `violência'."

Cláudio Perrone-Moisés é professora do departamento de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP